quarta-feira, 20 de maio de 2009

MANDIOCA

MANDIOCA

Semira Adler Vainsencher
semiraadler@gmail.com
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco


Diz uma lenda do Norte do Brasil que, certa vez, um cacique teve uma filha branca como o leite, diferente dos membros de sua tribo. Considerando-se desonrado, o cacique resolveu matá-la. Em seus sonhos, porém, apareceu Sumé, o grande mestre dos índios, dizendo-lhe que, se não quisesse ser castigado, nada de mal fizesse à menina, porque esta nada havia feito de errado. O cacique obedeceu prontamente ao mestre, e a criança, que era muito linda e inteligente, começou a andar e a falar no primeiro dia de vida, recebendo o nome de Mani .

Acontece que o grande deus Tupã reservara a Mani um outro destino: sem ter tido qualquer doença, a menina morreria de repente, antes de completar um ano de idade. Seu pai, o cacique da tribo, enterrou-a na maloca e, conforme o costume indígena, regou o seu túmulo diariamente. Um dia, ele percebeu que, do chão, brotou uma planta desconhecida. Nela apareceram flores, frutos e, a seguir, raízes. Ao serem descascadas, estas últimas eram brancas como Mani. Diante do ocorrido, os índios agradeceram a Tupã e, desde então, não deixaram de plantar e de se alimentar daquela raiz, dando-lhe o nome de Mani-oca, que significa casa de Mani. Através da elaboração dos beijus e do cauim - uma bebida popular entre eles - a mandioca se transformou em um dos elementos importantes da alimentação dos índios. Trazida por eles, a mandioca incorporou-se à culinária brasileira.

Há registros, entretanto, de que a planta é originária da Guiana Brasileira (Norte do Amazonas e do Pará), do sul das três Guianas (Britânica, Holandesa e Francesa), do sul da Bahia e do Nordeste de Minas Gerais.

Foram os colonizadores portugueses que, aproveitando os seus conhecimentos sobre a maquinaria da uva e da azeitona, criaram as tradicionais Casas de Farinha, presentes no Norte e no Nordeste do Brasil. Nessas Casas, antes de ser liberada para o consumidor, a mandioca passa por um processo delicado. Em primeiro lugar, colhe-se a raiz, raspa-se a sua casca, manualmente, e, em seguida, a parte branca é passada em um ralo fino, acionado por intermédio de uma roda grande.
Geralmente, são os homens que movem o ralador e, as mulheres, que enfiam a mandioca no caititu. Depois, a massa restante é imprensada no tipiti - um tipo de prensa - para dela se retirar a manipuera (ou ácido cianídrico), um produto venenoso da raiz. Após esse procedimento, os blocos de massa são retirados da prensa, desfeitos e, a seguir, peneirados em uma arupema. Somente no final dessa etapa é que o produto vai ao forno, transformando-se na popular farinha de mandioca.

Cabe registrar que os principais ingredientes da alimentação dos escravos africanos eram a farinha de mandioca e a carne-seca. Mediante alvarás e provisões régias datadas de 1642, 1680 e 1690, os senhores de engenho e lavradores de cana eram obrigados a cultivar aquela planta. Decretos posteriores vieram reiterar essa obrigação, exigindo-se daqueles o plantio de, pelo menos, quinhentas covas por escravo.
Desde o século XVII, portanto, ela vem representando um elemento bastante significativo na alimentação dos nordestinos e nortistas, sendo largamente utilizado na culinária junina, onde, além das comidas de milho, destacam-se os deliciosos bolos elaborados com a massa da mandioca, e os chamados pés-de-moleque e Souza Leão. A farinha de mandioca está sempre presente, inclusive, no prato tradicional brasileiro - a feijoada - e, com ela, faz-se também as tapiocas e farofas, onde são adicionados o azeite de dendê ou a manteiga de garrafa.

O amido da mandioca, advindo da fabricação da farinha e das raspas da raiz, é produzido por algumas Casas de Farinha. Esse subproduto é obtido do caldo - desprezado, na maior parte das vezes - que escorre das prensas. Possuindo um grande valor nutritivo, devido à sua riqueza em proteínas, vitaminas e sais minerais naturais, ele é utilizado na fabricação de biscoitos, sequilhos e outros produtos alimentares.

No que diz respeito ao consumo da mandioca faz-se necessário salientar que, nos lugares onde predominam as lavouras de subsistência, encontra-se um elevado consumo de carboidratos complexos, proveniente de um ou dois cereais e raízes (tais como a mandioca, o inhame, a batata-doce, o milho e o arroz), que tanto podem ser consumidos de forma isolada, quanto combinados com certas leguminosas, a exemplo do feijão. Nesses casos, o papel dos demais alimentos, no fornecimento de nutrientes importantes, passa a ser secundário, e o desenvolvimento das pessoas torna-se prejudicado.

Por sua vez, desde que haja um aproveitamento do amido residual proveniente das prensas, nas fábricas de farinha e de raspas, é possível, ainda, produzir-se uma farinha de melhor qualidade. Mas o que ocorre, na maior parte das vezes, é o aproveitamento de, somente, uma pequena percentagem do líquido que escorre. Segundo os especialistas no assunto, são perdidos cerca de 75% dos melhores nutrientes da mandioca, entre os quais as proteínas, as vitaminas e os sais minerais naturais. Apesar desse fato, aquela planta continua representando o verdadeiro pão do Brasil. Aqui, apenas nas terras consideradas demasiadamente argilosas, ou em trechos montanhosos, muito secos, empedrados, íngremes em demasia, ou em baixadas úmidas demais, é que não se cultiva a mandioca.

Através de seus hábitos alimentares, então, os portugueses introduziram a mandioca em sua culinária, bem como alguns outros ingredientes importantes: o coco (trazido da Índia), o sal, e a canela em pó - uma das especiarias - misturada com açúcar. Ao longo dos 500 anos, desde o descobrimento, foi sendo forjada uma nova cozinha. E as trocas alimentares, a união dos novos produtos, caminhos e experiências, a mistura de etnias e culturas, a miscigenação de gostos, formas e aromas, fez nascer a rica culinária brasileira.


Fontes consultadas:

ASPECTOS da cultura e da indústria da mandioca. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 1967.
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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